OPINIÃO DE
UM JUIZ
O artigo a seguir é de
autoria do Juiz de Direito Gustavo Sauaia Romero Fernandes, de São Paulo.
Em meio ao pomposo julgamento do mensalão,
com exposições orais quilométricas, relatórios épicos e votos que levariam anos
para serem inteiramente lidos e compreendidos por Camões, fiz a mim mesmo a
pergunta que muitos colegas devem – ou deveriam – estar formulando: se fosse
basear minha escolha de profissão nestas sessões do STF, teria eu escolhido o
caminho da magistratura? Mais que isso: teria escolhido fazer faculdade de
Direito, em vez de Engenharia (como meus pais queriam)? A resposta, muito
provavelmente, teria sido negativa – curta e grossa, sem calhamaços de
doutrinas e jurisprudências.
Os operadores do Direito têm muitas
verdades inconvenientes que precisam encarar, como já expus em oportunidade
anterior. Mas talvez nada seja tão urgente de ser revisto quanto o
distanciamento que a filosofia do “quanto maior e mais prolixo, melhor” está
provocando entre juristas e aquela à qual juízes, promotores e advogados devem
servir: a população. Quando estudante, e mesmo depois de formado, nunca achei
graça das piadinhas dos acadêmicos de exatas, na toada de que até para dirigir
em rua de mão única os juristas procuram duas correntes. Duro é constatar que
aqueles eram os bons tempos. Hoje duas correntes é coisa de iletrado. Estamos
vendo o ordenamento jurídico ser solenemente ignorado por interpretações cada
vez mais livres, com fundamentações cujo espírito chega a remeter ao musical
Hair. Quando vejo algumas delas, minha mente até canta os versos iniciais de
Aquarius. Com coreografia e tudo.
Uma colega de profissão me advertiu, no
início da carreira, que deveria ter cuidado para não exagerar na síntese. Uma
sentença perfeita, disse com propriedade, é aquela em que a mãe do réu entende
por que ele está sendo condenado. Pois me pergunto que mãe, pai, irmão, mulher,
filho, amigo ou inimigo de uma parte consegue entender que raios (para não
poluir o texto com um palavrão) estão falando os excelentíssimos senhores
doutores Ministros do STF. A Corte máxima do Processo nacional perde, sem o
menor constrangimento, a oportunidade de se fazer clara às pessoas. Não
bastasse isso, ainda inventa aberrações como réplica e tréplica de voto, como
se relator e revisor fossem acusadores ou defensores. Pobres processualistas,
que terão que explicar isso aos alunos. Pobres alunos, que terão que entender.
No cirque du soleil jurídico, vale tudo
para transformar cadeira em frigobar – expressão usada por um amigo, obviamente
leigo. Por isso ninguém ficará surpreso se o ex-advogado de um dos réus
declarar que não se considera suspeito para julgá-lo, pois não o defendeu neste
processo. Ou melhor: ficará surpreso sim, caso ele o diga em duas linhas, como
neste parágrafo. É mais provável que se valha de duas dúzias de páginas para
explicar a mesma coisa. Isso quando chegar sua vez de votar, o que pode levar
semanas, sem esquecer o feriado de 7 de setembro. Enquanto isso, todos os
outros recursos que tramitam no STF ficarão mofando. Sabe aquele seu processo
que corre há dez anos e está em Brasília? Prepare-se para esperar um pouco mais
– relativamente falando. Reclamações para a TV Justiça, por favor.
Perdoem-me se estou sendo mais franco que o
esperado, mas devo destacar que não estou questionando a idoneidade de nenhum
dos envolvidos. Critico, pois sim, a escolha que fazem sobre a forma de o Direito
se comunicar com a Sociedade, como se o primeiro não decorresse da existência
da segunda. Minha discordância não se resume, porém, apenas ao formalismo. Temo
pelo que se cria por meio desta liberdade extrema para, por meio destas enormes
ponderações, criar Direito além do que dizem as normas. Nem mesmo boas
intenções podem autorizar tal postura. O que conspira para o bem pode conspirar
para o mal. O precedente heroico de hoje, se não for baseado no que
Constituição e Leis realmente preconizam, pode ser a janela para o tenebroso
entrar em casa. Principalmente se ninguém entender nem o bem intencionado, nem
o malicioso.
O Direito brasileiro precisa de novas
togas, com urgência. Se preferir atuar sem elas, melhor ainda. O que não tem
mais sentido é continuar apresentando, ao vivo e em cores, o espetáculo do
anacronismo e do virtuosismo gramatical desnecessário. Do contrário, logo
estaremos diante do pior dos cenários: só restarem, para serem recrutados pelas
carreiras jurídicas, os que gostam deste show.
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